sexta-feira, 19 de julho de 2013

Avó e o Leite


Avó, de que cor é o teu cabelo? Branco. É da cor do leite

Avó, de que cor é o teu cabelo? Branco. É da cor do leite!

Fiquei comovida com a observação do meu neto que, nos seus dois anos de idade, gosta de “leitinho branco”.

O alimento primordial, que traz consigo conforto, carinho, crescimento, nutrição.

O leite é bom!

O meu neto não dizia que o cabelo era branco como a neve que, de tão fria, até queima, não falava em cãs, nem se referia à saudade. Na sua sabedoria infantil, contrariava a abominável frase do deputado da maioria PSD que, numa teatralidade parlamentar, afirmou que “a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha” (sic).

Foi para contrariar a violência sistematicamente perpetuada sobre idosos, agora também na alta Câmara do país, que fiz uma pesquisa sobre feitos dessa dita “peste grisalha”. Aqui vão uns tantos:

·        O código Morse foi descoberto aos 47 anos.

·        Edgar Rice Burroughs, criador do Tarzan, foi correspondente de Guerra aos 66 anos.

·        Bell ainda fazia invenções com 75 e Edison produziu o telefone aos 84.

·        Golda Meir foi primeiro ministro aos 70, Winston Churchill aos 66 e aos 77 e Adenauer aos 88.

·        Charles de Gaulle e Ronald Reagan foram presidentes aos 69.

·        Franklin deu a sua contribuição para a constituição dos EUA aos 81.

·        Goethe acabou o Fausto com 81, Tolstoi escreveu I cannot be silent aos 82, Somerset Maugham escreveu Pontos de vista aos 84, e Bernard Shaw escreveu as Farfetched Fables aos 93.

·        Claude Monet ainda pintava aos 70-80 anos, Miguel Ângelo aos 88 e Picasso aos 90.

·        Albert Schweizer ainda operava com 89 anos.

·        Elizabeth Arden e Coco Chanel governaram as companhias respectivas até aos 85.

·        Palmira Bastos representou pela última vez com 89 anos.

·        Rubinstein tocava aos 90 e Pablo Casals aos 96.

·        Tesichi Igarishi subiu o Monte Fuji a pé com 100 anos.

·        Manoel de Oliveira realizou 20 filmes a partir dos seus 82 e lançou o seu filme O Gebo e a Sombra aos 104.

Estes, dir-me-ão, são gente de sucesso, mas há por aí uma multidão de gente inútil e doente que faz a sociedade gastar imenso dinheiro. A trapalhada da pirâmide invertida!

Enquanto não decidem retomar um hábito da velha Esparta, deitando todos os velhos pela borda fora, quiçá em Sagres ou no cabo Espichel, gostaria de apontar que, sem grande brilho, sem pompa ou circunstância, há por aí muitas cabeças grisalhas a serem quotidianamente úteis:

- Há as mães de 80 anos que voltam a cuidar dos filhos desempregados e divorciados aos quarenta.

- Há avôs a tomar conta dos vários membros da prole subitamente sem casa e sem emprego.

- Há maridos a tomar conta das mulheres agora dementes, e vice-versa.

- Há pelo país fora velhotes, e só eles, a cuidar de campos, hortas e aldeias, garantindo com os seus cuidados a identidade milenar.

- Há muitos reformados embrenhados em acções de solidariedade.

- Há muitos avós a tomar conta dos netos, contrabalançando assim o peso excessivo que recai sobre os pais trabalhadores.

- Há muitos velhos que continuam a trabalhar e a ganhar as suas vidas.

- Há velhos que, vivendo teimosamente sozinhos, contrariam a pecúnia imobiliária.

- Há muitos velhos que, nas suas memórias, são repositórios únicos da cultura popular e das nossas memórias colectivas.

- Há cabeças grisalhas a tomar conta dos destinos europeus.

- Há uma rede nacional de solidariedade, de instituições e pessoas que, organizada fora da loucura vigente, mantém intocadas, vivas, impecáveis, capelas, igrejas, lares e outros apoios sociais.

- São cabeças grisalhas europeias que silenciosamente perpetuam em cada igreja a frase de Jesus Cristo: “Fazei isto em memória de mim”.

As escrituras ensinam que a idade traz sabedoria. Por isso, os patriarcas bíblicos, Abraão, Isaac e Jacob eram velhos e as instituições mais estáveis ao longo da história, tais como as Igrejas, as Universidades ou as Forças Armadas, têm sido governadas por cabeças grisalhas.

O nosso deputado não deve ter tido a felicidade de estar ao colo de uma avó, nem teve ou tem pais com cabeças grisalhas.

Eu, que tenho o cabelo da cor do leite, tenho verdadeiramente pena de si. Tenho pena de si e de todos os que não vêm na vida mais do que cifrões, poder e posse.

Pena dos que, tal como diz o Papa Francisco, são contaminadas pela globalização da indiferença.

Pena dos que não incluem no seu quotidiano qualquer transcendência.

Por isso mesmo, aqui deixo para o Senhor Deputado e para quem assim o quiser um salmo para que medite e, colateralmente, um Fado para que recorde.

Salmo 92:12-14

Os justos florescerão como uma palmeira e crescerão como cedros do Líbano; plantados na casa do Senhor florescerão na corte do Senhor nosso Deus. Darão ainda frutos na sua velhice e permanecerão frescos e verdejantes.


Professora Teresa Paiva


Lisboa, 19 de Julho de 2013

O Fado como Conselho

Cabelo branco é saudade
Da mocidade perdida,
Às vezes não é da idade
São os desgostos da vida.

Amar demais é doidice
Amar de menos maldade
Rosto enrugado é velhice
Cabelo branco é saudade.

Saudade são pombas mansas
A que nós damos guarida
Paraíso de lembranças
Da mocidade perdida.

Se a neve cai ao de leve
Sem mesmo haver tempestade
E o cabelo cor da neve
Às vezes não é da idade.

Pior que o tempo em nos pôr
A cabeça encanecida
São as loucuras de amor
São os desgostos da vida.

Para o passado não olhes
Quando chegares a velhinho.
Porque é tarde e já não podes
Voltar atrás no caminho

É como a lenha queimada
Dos velhos o coração
As cinzas são as saudades
Dos tempos que já lá vão.

Letra: Henrique Rego

Reportório de Alfredo Marceneiro

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Os Anjos da Guarda


Foi no dia 2 de Julho pelas nove e meia da manhã.

Um estrondo que, de tão forte e tão desconhecido, ninguém identificou.

O momento era de fuga… fugir de algo inominado e terrível.

Quando abri a porta do meu quarto vi a rua e um vizinho queimado a pedir ajuda

A escada estava cheia de vidros, madeira e escombros. O telefonema para o 112 saiu atrapalhado: uma explosão, Rua Conde das Antas, Campolide é grave. “Já sabemos!”

Estava tudo negro e o fogo iniciava-se envolvido num fumo ainda mais negro. Aterrador.

E o neto, que eu ouvira no jardim pouco antes? Ele estava bem, a Anabela chorava. “Ouvi um balhulho e caiu-me uma vela no nariz, e eu chorei”. Levá-lo para longe do fogo era imperioso; as amigas do Consultório apareceram como por milagre no jardim e vieram ter connosco; saímos, esquina abaixo, a espreitar o fogo.

Carros a arder na rua, primeiro um, depois outro e outro. Um jipe a arder debaixo da minha janela. Como evitar o fogo? Uma mangueira? A casa vai arder… Ninguém pensa direito nestas circunstâncias.

Um homem cheio de cortes deitado na rua. Chegam ambulâncias. Chegam os bombeiros e, numa questão de segundos, apagam o fogo.

Estamos juntas e cada uma conta a sua história. A Ana tinha estado a ver o autocarro parado e bloqueado por alguém mal estacionado e abrira a janela. A explosão atirou-a para debaixo de outra secretária e inundou-a de vidros. Desmaiou, mas a Sofia, que também tinha apanhado vidros, viera socorrê-la e ambas estavam ilesas, fora uma dor no ombro resultante da queda. A Ana V. entrara no recanto dos computadores segundos antes da explosão e com isso se salvou de todos os escombros atirados como estilhaços de bala. A Teresa e a Vera tinham saído um minuto antes da explosão e, quando ela veio, estavam a salvo na rua de cima. A Deolinda estava no ginásio e correu para junto das outras. Tinham fugido para o jardim em busca de refúgio. Estavam todas bem.

Não havia doentes no Consultório. O que tinha feito registo de sono já tinha saído, o que vinha fazer um EEG às 9:30 tinha desmarcado, outra esqueceu-se da consulta. Por razões mal explicadas, eu tinha desmarcado todas as consultas desse dia.

Olho para trás. Tinha preguiçado e atrasado o levantar e foram esses segundos de atraso que me salvaram de uma morte bem provável. Eu e todas nós tínhamos escapado por segundos.

A rua onde passam carros constantemente estava vazia, sem carros a passar no momento da explosão. O autocarro avançara momentos antes levando todos os passageiros sem problemas.

Um vizinho, cujo jipe ardeu, apoquentou-se por segundos, depois olhou para a casa dos pais totalmente destruída e pensou: eles foram ontem à tarde de férias e estão bem. Que alívio!

Uma avó idosa fora pôr o neto algures e atrasou-se no regresso a casa; estava na esquina no momento da explosão, longe do perigo.

A destruição era enorme, portas, vidros e janelas tinham desaparecido de três prédios; as marcas do fogo estavam na rua, havia vidros partidos em muitos pontos das redondezas.

Muitos nos ajudaram: o Presidente da Junta, Dr. André Couto (foi impecável) e, tal como ele, o pessoal da Junta de Freguesia, a Polícia e a Protecção Civil.

Pensei como era bom ter casas do século XIX e XX, com tão boa construção que resistiram estruturalmente àquele embate, e agradeci mentalmente à família Pereira Coutinho.

Os amigos telefonaram dando conforto e perguntando “O que é preciso?”. Foi bom, muito bom.

Chamei a filha e o genro. “Foi grave…” Eles vieram a correr para uma enorme ajuda e um apoio inestimável.

Mas nós estávamos bem, protegidos por forças que nos transcendem e que, um a um, tomaram conta de nós. Sem qualquer ferida num mar de escombros.

Os anjos da Guarda tinham protegido a Clínica e tomado conta de nós.

Um enorme reconhecimento; uma profunda gratidão, pois tal como se reza no Pai-nosso, “tínhamos sido livradas do mal”.

Quando me dizem “Que grande azar!” penso. “Não, foi uma grande sorte!”

Foi assim que, juntos, começámos a pôr tudo de pé, como uma equipa forte e coesa.

E hoje, passados que foram os piores momentos, sinto essa protecção dos anjos pairando sobre a casa e adormeço em sossego.

 

Prof. Teresa Paiva,

Lisboa 11 de Julho de 2013