Existe a convicção generalizada de que andar
durante o sono equivale a ter sonambulismo. É uma convicção equívoca que leva a
frequentes erros de diagnóstico ou a grandes atrasos na ida ao médico.
Porquê? Porque andar durante o sono pode ser
devido a várias causas e, consequentemente, ter tratamentos diferentes.
Pode efectivamente ser devido a sonambulismo. O
sonambulismo é uma doença bem definida, porque é mais frequente nos rapazes, é
familiar, começa em redor dos 5-6 anos de idade e tende a desaparecer na
adolescência. Os episódios surgem classicamente no sono delta, ou sono
profundo, cerca de 1 hora depois do adormecer e não se repetem mais na mesma
noite. O sonâmbulo tem uma memória vaga ou quase nula dos acontecimentos, anda
pela casa de uma forma ordenada mas inconsciente, pelo que corre riscos de
acidentes, como cair por uma escada ou de uma janela, partir objectos, etc.
Geralmente, não é agressivo, mas pode ter agressividade se contrariado.
O sonambulismo pode ser provocado por alguns
fármacos psicoactivos, e ser agravado pelo álcool, drogas, febre ou pela
privação de sono.
O conhecimento disto é muito antigo. Já na
Odisseia surge porventura o primeiro caso descrito e agravado pelo álcool, em
que Elpenor, guerreiro da guerra de Tróia, tinha bebido vinho após uma batalha
e subiu a um telhado onde dormiu. Quando, na manhã seguinte, foi chamado para
embarcar, levantou-se, andou pelo telhado, caiu e morreu. A Síndrome de Elpenor
refere-se, pois, a isso mesmo e aos riscos dos episódios de deambulação quando
se está a dormir ou se acorda subitamente num alerta confusional.
Recentemente, o filme Side effects trata novamente do assunto, descrevendo um crime
executado num “pseudo” episódio de sonambulismo desencadeado por um anti-depressivo,
e que teria sido “perfeito”, se um psiquiatra não o tivesse investigado usando
um raciocínio policial.
O psiquiatra poderia ter usado um raciocínio mais
clínico, ou seja, perante um caso de violência nocturna, há que investigar com
imenso rigor e isenção, reproduzindo comportamentos, fazendo testes, estudos de
sono, e outros exames necessários, para determinar se a violência, com ou sem
crime, resulta de maldade ou de doença.
Violência no sono?
Sim, claro, a violência pode existir no sono e é,
nesse caso, particularmente perigosa. Porquê? Porque quem a executa está
inconsciente e a intensidade dos actos pode ser grande.
Quais as causas?
O sonambulismo, os terrores nocturnos e os
alertas confusionais podem ser causa de violência ou de acidentes.
Outro caso é a epilepsia nocturna. Algumas epilepsias
surgem exclusivamente ou predominantemente de noite e manifestam-se por
episódios com comportamentos simples (movimentos dos membros, gritos, etc.) ou
complexos (andar, sentar na cama, cair da cama, agredir, bater, etc.).
Confundidas com sonambulismo, não são tratadas. Quais as diferenças? As
epilepsias podem surgir a diferentes horas da noite ou no adormecer, podem
ocorrer várias vezes na mesma noite, os comportamentos são estereotipados e
deles não há memória no dia seguinte ou quando se acorda. O acordar é difícil,
com dores no corpo, dores de cabeça ou confusão. As epilepsias podem surgir em
crianças, em adultos e em idosos, e algumas são mesmo familiares.
Outros casos ainda que, classicamente, surgem
principalmente em homens idosos são os transtornos comportamentais do sono REM.
O que é isto? São episódios que ocorrem no contexto de um sonho, durante o qual
alguém está a agredir ou o doente ou um familiar. O doente defende-se e, nessa
defesa onírica, agride violentamente quem está próximo, salta da cama como se
voasse, esbraceja, etc. Quando acorda com alguma dificuldade, muitas vezes ou
porque alguém está a gritar ou porque se magoou, vê a desgraça que provocou e
arrepia-se: são olhos negros, pescoços apertados, feridas e sangue, braços partidos,
etc. , etc., sempre coisas más. Quem o faz é geralmente pacífico e cordato e
não está de modo nenhum a exprimir violência, antes pelo contrário, esteve a
defender-se dela.
O que aconteceu? Teve sonhos em que era vítima de
violência, durante os quais, por não ter a clássica, normal e protectora
“atonia do REM”, que nos paralisa transitoriamente, executou mesmo o que estava
a sonhar.
Tanto as epilepsias como o transtorno
comportamental do sono REM carecem de tratamento eficaz e imediato por
especialistas em Medicina do Sono ou por Neurologistas. O sonambulismo, na
maior parte dos casos, carece de medidas protectoras e profilácticas.
Portanto, nunca confunda uns com os outros,
porque muitas vezes andar a dormir não é sonambulismo.
Professora Teresa Paiva,
Lisboa 26 de Abril de 2013