sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sono e carreira: quem influencia quem?



O sono e a carreira são dois conceitos que têm sido alvo de bastante atenção e preocupação por académicos e teóricos um pouco por todo o mundo, ainda que nem sempre se analisem as relações entre ambos. Os estudos do sono têm-se focalizado na análise dos hábitos, fatores pessoais e fatores ambientais que afetam o sono de crianças, jovens, adultos e idosos, bem como das patologias associadas. Por sua vez, os estudos da carreira têm analisado o seu desenvolvimento no contexto do ciclo de vida, assumindo a existência de diferentes fases, etapas e tarefas, bem como no contexto dos diferentes palcos de vida.
Atualmente, a relação entre estes conceitos tem sido alvo de um investimento acentuado, embora ainda seja difícil assumir-se a sua bidirecionalidade, isto é, o sono influencia a carreira, do mesmo modo que a carreira influencia o sono. 
No que respeita à direcção da primeira relação, ou seja, entre sono e carreira, estudos prévios têm avaliado questões do sono em profissionais de diferentes áreas. Alguns dos participantes envolvidos são os oficiais da marinha ou do exército, os enfermeiros da emergência médica, os hospedeiros de bordo, e todos os trabalhadores que, em geral, estão envolvidos em atividades que decorrem por turnos e, por este motivo, fomentam horários (duração) e rotinas (regularidade) muito diversificados. Neste âmbito, tem-se verificado, a título de exemplo, que, quando a duração, regularidade e autonomia do sono não são adequadas, podem surgir efeitos ao nível da saúde em geral (p. ex., mais fadiga), do funcionamento cognitivo (p. ex., dificuldades de atenção, concentração, e memorização), do humor (p. ex., irritabilidade, depressão), da aprendizagem, do desempenho e produtividade, das promoções, e da qualidade de vida (p. ex., menores níveis de satisfação com a vida).
No que concerne à direcção da segunda relação, ou seja, entre carreira e sono, os estudos prévios existem em muito menor número. Apesar disso, têm avaliado o impacto das diferentes carreiras e estilos de vida consequentes nos padrões de sono. Estes estudos têm sido desenvolvidos com participantes tais como os cuidadores, os (trabalhadores-) estudantes e os casais com dupla carreira. A este nível existe uma preocupação central associada ao equilíbrio/conflito entre os diferentes papéis de vida, isto é, o modo como a conciliação ou não dos diferentes papéis de vida (p. ex., ser mãe, ser trabalhadora, e ter vida social e de lazer) pode levar a problemas nos padrões de sono. Por outro lado, a fase de desenvolvimento de carreira (p. ex., exploração, estabelecimento, declínio), mais orientada para a exploração, a progressão, a manutenção ou a reforma, em que a pessoa se encontra também pode influenciar as questões de sono, nomeadamente levando a longos períodos de privação. Acrescenta-se ainda que os aspetos como as exigências de disponibilidade para o trabalho, os conflitos, o stress, o burnout, o mobbing e a competitividade estão associados a uma má qualidade do sono.
Daqui se conclui que, se uma boa noite nos prepara efetivamente para encarar com maior disposição, interesse e competência a vida pessoal e profissional, por seu turno, um bom dia é crucial para promover as condições necessárias para uma noite descansada. 



Joana Carneiro Pinto
Professora Universitária

Consulta de Aconselhamento Profissional e Gestão de Carreira do Centro de Medicina do Sono do CENC

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A caminho do esgotamento


O caminho para o esgotamento é tortuoso e nebuloso, com voltas e reviravoltas, incerto e certo, muitas vezes curto, outras vezes longo, e, nos dias de hoje, percorrido por crianças, adolescentes, mulheres, homens, filhos e pais, profissionais e empresários. Um ror de gente e um triste caminho!

Mas vale a pena perguntar como lá se chega e o que lá se encontra. Chega-se lá de uma forma parecida: trabalhando muito, dormindo pouco, ajudando com estimulantes, drogas ou remédios.

Dirão: Que disparate! Como é que uma criança chega a isso?

Hoje em dia, no Portugal tranquilo e soalheiro, muitas crianças e adolescentes saem de casa ainda não é dia e chegam já de noite, depois de terem estado na escola, nos centros de estudo, nas actividades extra-escolares. Aprendem espanhol, inglês, ténis, natação ou equitação e outras coisas mais. Chegam a casa tarde, porque os pais trabalham também até tarde, jantam às 21h, vêm televisão ou brincam com a play station, o computador e o ipad, trocam mensagens com os amigos no telemóvel ou nas redes sociais e, por volta das 23h ou meia-noite, lá vão para a cama, de cabeça cheia, para dormirem melhor ou pior e acordarem antes do tempo, lá para as 7h, ensonados e irritados.

Nos fins-de-semana, há ainda os trabalhos de casa, inúmeros e excessivos, tendo em conta a sobrecarga escolar. Continhas feitas, trabalham pelo menos 40 horas por semana, ou seja, tanto ou mais do que o horário oficial de um adulto!

Consequências: a prazo, estes meninos e meninas ficam cansados, nervosos, com dores de cabeça e queixas de saúde, mas vão aguentando e, quando chegam à universidade, deparam com a surpresa de não serem capazes de estudar, de se orientar, de autonomia. Estão esgotados!

Esgotados sim, porque, para se prepararem para a vida, as crianças e jovens precisam de brincar, de ter limites no estudo, no tempo de aulas, nos trabalhos e no uso das tecnologias em voga.

Para os adultos, homens e mulheres, acontece o mesmo. Caem neste paradigma aqueles que têm de ter sucesso à viva força, os que trabalham demais e começam o dia cedo para o acabarem tarde, os que têm muitas responsabilidades, sejam elas económicas, financeiras, de pessoas para gerir ou de firmas para governar. Caem ainda as mães e pais de família com filhos e cheios de trabalho e de afazeres, as mães ou pais que, sozinhos, têm a responsabilidade de um ou mais filhos e entendem isso como sendo natural, esquecendo como é difícil. Caem os que fazem mil tropelias para não dormir, com cafés, estimulantes, ginástica fora de horas, e outras coisas mais. Caem os que trabalham por turnos e os que têm horários irregulares. Caem os que viajam muito e mudam frequentemente de país e de fuso horário. Caem os que não podem recusar o excesso de trabalho a que são obrigados. Caem os que têm de trabalhar o máximo para salvar a economia familiar periclitante, num mundo de regras financeiras e jurídicas que não aprenderam nem entendem. Caem muitos, infelizmente…

Mas o que é o esgotamento, também conhecido por “burn-out”?

Como disse, os caminhos são tortuosos e nebulosos. O primeiro passo é a compulsão para trabalhar por ambição ou obrigatoriedade de o fazer, ou a compulsão para usar tecnologias por divertimento ou integração em grupos. A seguir, faz-me sempre mais para ser sempre melhor, e começa-se a negligenciar as necessidades (esquecem-se as horas, as refeições, o dormir, a família, os amigos…), mas, como tudo parece estar mais ou menos, não se vislumbra a raiz dos problemas, que depois, são mesmo negados (Está tudo bem! Não há problema!). É então que os problemas se avolumam: a irritação, as olheiras, os esquecimentos e lapsos, o adormecer inapropriado. A depressão, carregada de tristeza e vontade de não fazer nada, a fadiga extrema física e mental (Estou desfeito!).


Aí está o tal esgotamento!  

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Avó e o Leite


Avó, de que cor é o teu cabelo? Branco. É da cor do leite

Avó, de que cor é o teu cabelo? Branco. É da cor do leite!

Fiquei comovida com a observação do meu neto que, nos seus dois anos de idade, gosta de “leitinho branco”.

O alimento primordial, que traz consigo conforto, carinho, crescimento, nutrição.

O leite é bom!

O meu neto não dizia que o cabelo era branco como a neve que, de tão fria, até queima, não falava em cãs, nem se referia à saudade. Na sua sabedoria infantil, contrariava a abominável frase do deputado da maioria PSD que, numa teatralidade parlamentar, afirmou que “a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha” (sic).

Foi para contrariar a violência sistematicamente perpetuada sobre idosos, agora também na alta Câmara do país, que fiz uma pesquisa sobre feitos dessa dita “peste grisalha”. Aqui vão uns tantos:

·        O código Morse foi descoberto aos 47 anos.

·        Edgar Rice Burroughs, criador do Tarzan, foi correspondente de Guerra aos 66 anos.

·        Bell ainda fazia invenções com 75 e Edison produziu o telefone aos 84.

·        Golda Meir foi primeiro ministro aos 70, Winston Churchill aos 66 e aos 77 e Adenauer aos 88.

·        Charles de Gaulle e Ronald Reagan foram presidentes aos 69.

·        Franklin deu a sua contribuição para a constituição dos EUA aos 81.

·        Goethe acabou o Fausto com 81, Tolstoi escreveu I cannot be silent aos 82, Somerset Maugham escreveu Pontos de vista aos 84, e Bernard Shaw escreveu as Farfetched Fables aos 93.

·        Claude Monet ainda pintava aos 70-80 anos, Miguel Ângelo aos 88 e Picasso aos 90.

·        Albert Schweizer ainda operava com 89 anos.

·        Elizabeth Arden e Coco Chanel governaram as companhias respectivas até aos 85.

·        Palmira Bastos representou pela última vez com 89 anos.

·        Rubinstein tocava aos 90 e Pablo Casals aos 96.

·        Tesichi Igarishi subiu o Monte Fuji a pé com 100 anos.

·        Manoel de Oliveira realizou 20 filmes a partir dos seus 82 e lançou o seu filme O Gebo e a Sombra aos 104.

Estes, dir-me-ão, são gente de sucesso, mas há por aí uma multidão de gente inútil e doente que faz a sociedade gastar imenso dinheiro. A trapalhada da pirâmide invertida!

Enquanto não decidem retomar um hábito da velha Esparta, deitando todos os velhos pela borda fora, quiçá em Sagres ou no cabo Espichel, gostaria de apontar que, sem grande brilho, sem pompa ou circunstância, há por aí muitas cabeças grisalhas a serem quotidianamente úteis:

- Há as mães de 80 anos que voltam a cuidar dos filhos desempregados e divorciados aos quarenta.

- Há avôs a tomar conta dos vários membros da prole subitamente sem casa e sem emprego.

- Há maridos a tomar conta das mulheres agora dementes, e vice-versa.

- Há pelo país fora velhotes, e só eles, a cuidar de campos, hortas e aldeias, garantindo com os seus cuidados a identidade milenar.

- Há muitos reformados embrenhados em acções de solidariedade.

- Há muitos avós a tomar conta dos netos, contrabalançando assim o peso excessivo que recai sobre os pais trabalhadores.

- Há muitos velhos que continuam a trabalhar e a ganhar as suas vidas.

- Há velhos que, vivendo teimosamente sozinhos, contrariam a pecúnia imobiliária.

- Há muitos velhos que, nas suas memórias, são repositórios únicos da cultura popular e das nossas memórias colectivas.

- Há cabeças grisalhas a tomar conta dos destinos europeus.

- Há uma rede nacional de solidariedade, de instituições e pessoas que, organizada fora da loucura vigente, mantém intocadas, vivas, impecáveis, capelas, igrejas, lares e outros apoios sociais.

- São cabeças grisalhas europeias que silenciosamente perpetuam em cada igreja a frase de Jesus Cristo: “Fazei isto em memória de mim”.

As escrituras ensinam que a idade traz sabedoria. Por isso, os patriarcas bíblicos, Abraão, Isaac e Jacob eram velhos e as instituições mais estáveis ao longo da história, tais como as Igrejas, as Universidades ou as Forças Armadas, têm sido governadas por cabeças grisalhas.

O nosso deputado não deve ter tido a felicidade de estar ao colo de uma avó, nem teve ou tem pais com cabeças grisalhas.

Eu, que tenho o cabelo da cor do leite, tenho verdadeiramente pena de si. Tenho pena de si e de todos os que não vêm na vida mais do que cifrões, poder e posse.

Pena dos que, tal como diz o Papa Francisco, são contaminadas pela globalização da indiferença.

Pena dos que não incluem no seu quotidiano qualquer transcendência.

Por isso mesmo, aqui deixo para o Senhor Deputado e para quem assim o quiser um salmo para que medite e, colateralmente, um Fado para que recorde.

Salmo 92:12-14

Os justos florescerão como uma palmeira e crescerão como cedros do Líbano; plantados na casa do Senhor florescerão na corte do Senhor nosso Deus. Darão ainda frutos na sua velhice e permanecerão frescos e verdejantes.


Professora Teresa Paiva


Lisboa, 19 de Julho de 2013

O Fado como Conselho

Cabelo branco é saudade
Da mocidade perdida,
Às vezes não é da idade
São os desgostos da vida.

Amar demais é doidice
Amar de menos maldade
Rosto enrugado é velhice
Cabelo branco é saudade.

Saudade são pombas mansas
A que nós damos guarida
Paraíso de lembranças
Da mocidade perdida.

Se a neve cai ao de leve
Sem mesmo haver tempestade
E o cabelo cor da neve
Às vezes não é da idade.

Pior que o tempo em nos pôr
A cabeça encanecida
São as loucuras de amor
São os desgostos da vida.

Para o passado não olhes
Quando chegares a velhinho.
Porque é tarde e já não podes
Voltar atrás no caminho

É como a lenha queimada
Dos velhos o coração
As cinzas são as saudades
Dos tempos que já lá vão.

Letra: Henrique Rego

Reportório de Alfredo Marceneiro

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Os Anjos da Guarda


Foi no dia 2 de Julho pelas nove e meia da manhã.

Um estrondo que, de tão forte e tão desconhecido, ninguém identificou.

O momento era de fuga… fugir de algo inominado e terrível.

Quando abri a porta do meu quarto vi a rua e um vizinho queimado a pedir ajuda

A escada estava cheia de vidros, madeira e escombros. O telefonema para o 112 saiu atrapalhado: uma explosão, Rua Conde das Antas, Campolide é grave. “Já sabemos!”

Estava tudo negro e o fogo iniciava-se envolvido num fumo ainda mais negro. Aterrador.

E o neto, que eu ouvira no jardim pouco antes? Ele estava bem, a Anabela chorava. “Ouvi um balhulho e caiu-me uma vela no nariz, e eu chorei”. Levá-lo para longe do fogo era imperioso; as amigas do Consultório apareceram como por milagre no jardim e vieram ter connosco; saímos, esquina abaixo, a espreitar o fogo.

Carros a arder na rua, primeiro um, depois outro e outro. Um jipe a arder debaixo da minha janela. Como evitar o fogo? Uma mangueira? A casa vai arder… Ninguém pensa direito nestas circunstâncias.

Um homem cheio de cortes deitado na rua. Chegam ambulâncias. Chegam os bombeiros e, numa questão de segundos, apagam o fogo.

Estamos juntas e cada uma conta a sua história. A Ana tinha estado a ver o autocarro parado e bloqueado por alguém mal estacionado e abrira a janela. A explosão atirou-a para debaixo de outra secretária e inundou-a de vidros. Desmaiou, mas a Sofia, que também tinha apanhado vidros, viera socorrê-la e ambas estavam ilesas, fora uma dor no ombro resultante da queda. A Ana V. entrara no recanto dos computadores segundos antes da explosão e com isso se salvou de todos os escombros atirados como estilhaços de bala. A Teresa e a Vera tinham saído um minuto antes da explosão e, quando ela veio, estavam a salvo na rua de cima. A Deolinda estava no ginásio e correu para junto das outras. Tinham fugido para o jardim em busca de refúgio. Estavam todas bem.

Não havia doentes no Consultório. O que tinha feito registo de sono já tinha saído, o que vinha fazer um EEG às 9:30 tinha desmarcado, outra esqueceu-se da consulta. Por razões mal explicadas, eu tinha desmarcado todas as consultas desse dia.

Olho para trás. Tinha preguiçado e atrasado o levantar e foram esses segundos de atraso que me salvaram de uma morte bem provável. Eu e todas nós tínhamos escapado por segundos.

A rua onde passam carros constantemente estava vazia, sem carros a passar no momento da explosão. O autocarro avançara momentos antes levando todos os passageiros sem problemas.

Um vizinho, cujo jipe ardeu, apoquentou-se por segundos, depois olhou para a casa dos pais totalmente destruída e pensou: eles foram ontem à tarde de férias e estão bem. Que alívio!

Uma avó idosa fora pôr o neto algures e atrasou-se no regresso a casa; estava na esquina no momento da explosão, longe do perigo.

A destruição era enorme, portas, vidros e janelas tinham desaparecido de três prédios; as marcas do fogo estavam na rua, havia vidros partidos em muitos pontos das redondezas.

Muitos nos ajudaram: o Presidente da Junta, Dr. André Couto (foi impecável) e, tal como ele, o pessoal da Junta de Freguesia, a Polícia e a Protecção Civil.

Pensei como era bom ter casas do século XIX e XX, com tão boa construção que resistiram estruturalmente àquele embate, e agradeci mentalmente à família Pereira Coutinho.

Os amigos telefonaram dando conforto e perguntando “O que é preciso?”. Foi bom, muito bom.

Chamei a filha e o genro. “Foi grave…” Eles vieram a correr para uma enorme ajuda e um apoio inestimável.

Mas nós estávamos bem, protegidos por forças que nos transcendem e que, um a um, tomaram conta de nós. Sem qualquer ferida num mar de escombros.

Os anjos da Guarda tinham protegido a Clínica e tomado conta de nós.

Um enorme reconhecimento; uma profunda gratidão, pois tal como se reza no Pai-nosso, “tínhamos sido livradas do mal”.

Quando me dizem “Que grande azar!” penso. “Não, foi uma grande sorte!”

Foi assim que, juntos, começámos a pôr tudo de pé, como uma equipa forte e coesa.

E hoje, passados que foram os piores momentos, sinto essa protecção dos anjos pairando sobre a casa e adormeço em sossego.

 

Prof. Teresa Paiva,

Lisboa 11 de Julho de 2013

 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Os marialvas e as super-mulheres


Quando eu era pequena, os marialvas dedicavam-se a carros e mulheres ou a touros e mulheres, com ou sem misturas de fado e valentes bebedeiras. Bonitos ou feios, não seriam particularmente inteligentes ou cultos, mas andavam afadigados nas já referidas ocupações.

Nesse tempo, as mulheres ou eram mães ou eram mulheres, raramente ambas, porque quando mães, avolumavam-se e, redondinhas, perdiam o interesse dos maridos, e, quando eram mulheres, rodeavam-se de tias solteiras e/ou “criadas” (nome dado às empregadas domésticas) e, preocupadas com vestidos e festas, delegavam a atenção aos filhos para planos secundários.

Hoje tudo é diferente.

As super-mulheres de hoje são tudo: mães, esposas, profissionais e domésticas, e, para o conseguirem, fazem piruetas acrobáticas para fazer tudo em condições: tratam dos filhos, embelezam-se para o marido, são perfeitas no trabalho e ainda arrumam a casa.

Impossível! Não se pode fazer tudo bem, sobretudo porque falta tempo para serem elas próprias.

Tensas e irritáveis, organizam-se cada vez mais para se perderem de seguida em consequências funestas: esgotamento, depressão, separação e outras trapalhadas, e muitos sonhos desfeitos apesar do muito trabalho e do grande empenhamento.

E os homens? Um homem com um mínimo de sensatez não se atreve a gabar-se publicamente das suas conquistas femininas, nem das velocidades supersónicas dos seus carros, nem de noites encharcadas em vinho. Se o fizesse, teria à perna feministas, jornalistas, e outros tantos críticos e, quiçá, arriscava perseguição de qualquer forma de polícia.

De que se gabam, então? Espantada, ouço nos media, de forma reiterada e sucessiva, uma frase com sabor de auto-elogio: “Durmo poucas horas, mas…”; “Durmo pouco”; “Não dormi”.

Dormem pouco? Alguém quereria que um cirurgião o operasse, com mão imprecisa e olhos sonolentos por não ter dormido? Certamente que não.

Então porque havemos de querer que aqueles/as que tratam de assuntos importantes das instituições ou da nação, ou que lidam com matérias do nosso quotidiano, ou que tratam de aspectos económicos das mais variadas dimensões, que trabalham aqui, ali e acolá nas instituições mais variadas, em suma, aqueles/as que precisam de pensar, exerçam essas funções privados/as de sono?

Sabe-se que a privação de sono afecta o lobo frontal e as suas funções executivas, atingindo também o pensamento abstracto, a flexibilidade de raciocínio, a capacidade criativa, a memória, a aprendizagem.

No seu livro Sleepfaring, Jim Horne questiona exactamente o efeito da privação de sono em pessoas em lugares chave de decisão.

Efectivamente o conselho mais importante de Clinton a Obama foi que dormisse bem, porque ele próprio tinha cometido erros, sempre que não dormira o suficiente.

Voltando à “velha guarda”, não consta que o Dr. Mário Soares alguma vez se tenha gabado de dormir pouco. O Einstein também não.

Porque... quem não dorme bem não pode pensar bem e, tal como já dizia Nietzsche em Assim falava Zaratustra:

"Todos vós, que amais o trabalho desenfreado (...), o vosso labor é maldição e desejo de esquecerdes quem sois."

 

Prof. Teresa Paiva

Lisboa, 21 de Junho de 2013


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Alma sã em corpo são


Com a descoberta da electricidade, o desenvolvimento industrial e tecnológico, o controlo sobre a energia, a produção alimentar, as comunicações, etc., e com os paradigmas sociais voltados para o “ter” e para o “sucesso”, a sociedade internacional modificou-se e desenvolveu novos hábitos de vida e de trabalho. A sociedade passou a funcionar em contínuo, primeiro 24h por dia e depois os 7 dias da semana. Os prazeres modificaram-se e estenderam-se pela noite. Neste enquadramento, o sono passou a ser visto como um empecilho para o trabalho, a produtividade e os interesses económicos.

Por isso, desde o último século, dorme-se menos, e progressivamente menos, e este deficit atinge todas as idades.

Antes, ninguém questionava quanto devia dormir um bebé, agora perguntam-me se 8 horas chega! Na minha adolescência, jantava-se cedo e a televisão parava à meia-noite com o hino nacional, agora o jantar é cada vez mais tardio e a televisão não pára. Namorava-se com “chaperon” e autorização dos pais, agora os namorados estão juntos olhando cada um para o seu telemóvel. Agradecia-se a Deus “o pão de cada dia” e nada se estragava, hoje há comida em grande abundância nos centros comerciais e hipermercados.

Convencemo-nos de que não tínhamos limites.

Há cada vez mais pobres e muitos milhões estão abaixo do limiar da pobreza; os divórcios e as famílias monoparentais aumentam; as doenças do sono também.

Os alertas para os riscos deste comportamento são muitos, mas na sociedade global não falam suficientemente alto, sufocados pelos sistemáticos desafios e incentivos em sentido contrário.

Os riscos e as consequências são, contudo, graves. Em todas as idades e em todos os continentes, dormir de menos ou demais aumenta o risco de obesidade, hipertensão arterial, diabetes tipo II, acidentes, cancro, depressão, insónia, morte mais precoce. Sobrepostos a todos estes riscos há os que afectam o cérebro, diminuindo a memória, a aprendizagem, a  criatividade, a resolução de problemas e afectando as emoções e a estabilidade emocional.

Porquê?

Porque no sono acontecem duas coisas fundamentais. O cérebro, liberto da atenção ao exterior, foca a sua atenção sobre si próprio e sobre o corpo, e estes dois diálogos são essenciais para a saúde.

No sono, o paradigma milenar de “alma sã em corpo são” assume deste modo a sua intensidade máxima.

O cérebro cuida de si próprio, aumentando a intensidade do sono em áreas mais estimuladas enquanto acordado (por exemplo, áreas com maior aprendizagem), religando circuitos importantes e fomentando interligação rápida entre várias zonas para que falem entre si, desligando circuitos para que descansem, apagando informação irrelevante e reforçando aquela que importa.

Como não se aprende o que não se gosta, o cérebro que dorme estabiliza as emoções; como, para aprender, é preciso experimentar, cria ambientes virtuais nos sonhos, onde, sem risco, se pode discutir, fugir, lutar, conversar ou chorar; como é preciso inovar, os sonhos versam sobre coisas impossíveis sem esquecer a raiz do real.

 Assim é do conhecimento corrente que a privação de sono aumenta os lapsos de atenção, lentifica a memória, reduz o output cognitivo e induz um humor depressivo.

Nos adolescentes e crianças, a perda de sono aumenta a distractibilidade e a irritabilidade, por oposição ao sono adequado que consolida a memória.

Por outro lado, a privação afecta a memória de estímulos neutros e positivos. Este efeito tem como consequência realçar a recordação de estímulos negativos e aumentar as respostas comportamentais de impulsividade a estímulos negativos, associando-se a menor expressividade facial aos estímulos emocionais.

A privação de sono tem também consequências comportamentais como maior risco de trauma, acidentes não intencionais e quedas em crianças e adolescentes e adultos.

As relações entre sono e capacidade intelectual têm sido avaliadas indirectamente através das relações com características do sono, tendo sido encontradas correlações entre as características dos fusos de sono e o quociente de inteligência.

É também sabido que um episódio de sono após um período de aprendizagem melhora essa mesma aprendizagem. Isto é verdade para tarefas verbais, motoras, tarefas de orientação espacial e desempenhos mais especializados, como tocar música, etc.

Por sua vez, a aprendizagem diurna de uma tarefa motora associa-se e correlaciona-se linearmente com um aumento da actividade delta e dos fusos de sono, no sono subsequente, na região motora contra-lateral.

Os efeitos do sono na consolidação da memória foram descritos no início do século XIX e do século XX, mas actualmente existe um corpo significativo de trabalhos que reafirma a função e o efeito do sono na consolidação de memórias de procedimentos e também na memória declarativa. Por outro lado, o sono não só melhora como também protege a memória declarativa.

Desde os anos 60 que se sabe que a memória declarativa é afectada tanto pelo sono como pela privação de sono. A privação de 36h de sono diminui significativamente a retenção de sequências temporais, mesmo com o auxílio de doses de cafeína, e afecta também a percepção correcta do desempenho.

A ideia de que o sono activa a criatividade advém de relatos de muitos cientistas e artistas que revelaram ter feito as suas obras ao acordar, após um sonho ou em fases de hipnagogia.

O relato mais detalhado deve-se a Kekulé, relativamente ao sonho que o leva à descoberta da estrutura do anel de benzeno. Referem-se outros: a descoberta do carreto da máquina de costura por Singer, os quadros de Dali, o livro Mr. Jeckyll and Mr. Hyde por Stevenson, o Imagine do Paul Mac Cartney, o filme Sonhos de Kurosawa, etc.

O efeito do sono não é apenas codificar e consolidar memórias ou aprendizagens mas antes integrá-las em novos esquemas associativos, que, através da generalização ou integração, podiam mostrar novas perspectivas ou direcções, dando razão ao ditado popular: “O travesseiro é bom conselheiro”.

Diversas experiências foram feitas neste sentido provando esta capacidade de integração “de novo” tanto em adultos como em crianças em fase pré-lingual.

Tendo isto em conta, o sono nocturno possibilita para todas as idades a consolidação de memórias e favorece os conceitos de generalização de informação e a identificação de soluções escondidas.

O conhecimento do efeito do sono sobre as emoções advém do aumento de irritabilidade e de mau humor após uma noite de privação de sono, características que se agravam se a privação for mantida. Apesar disto, também se sabe que a privação aguda (algumas noites) de sono pode ter um efeito anti-depressivo, efeito esse usado, anos atrás, no tratamento das depressões graves.

Por outro lado, sabe-se que tanto o stress como as emoções positivas ou negativas que ocorrem no dia-a-dia influenciam o sono.

O aumento de eventos positivos contribui para melhor sono subjectivo, e uma noite de sono melhora o reconhecimento de imagens com componentes emocionais. Os acontecimentos negativos tiram o sono a muitos, bons ou maus, dormidores.

Nesta perspectiva, a privação de sono funciona como uma bomba relógio para surtos de irritabilidade/agressividade na vida normal e pode explicar o humor depressivo de muitas perturbações psiquiátricas.

Finalmente, múltiplas doenças do sono, ou doenças médicas, neurológicas e psiquiátricas que o atingem de modo primordial afectam sistematicamente a memória, a capacidade de atenção e as funções executivas.

Assim, a prática de dormir pouco em trabalhadores intelectuais afecta sobremaneira as capacidades cognitivas (memória, aprendizagem, criatividade), as funções executivas e as capacidades emocionais, capacidades estas, essenciais à própria execução das tarefas intelectuais.

Por isso, se o cérebro e o corpo são as nossas ferramentas de trabalho, pô-las em risco equivale a matar “a galinha de ovos de ouro” de cada profissional.

Em síntese: para pensar bem, é importante dormir bem.

E o corpo?

Os riscos para o corpo da privação de sono já foram descritos. Porquê?

Durante o sono, são produzidas de forma regular e sistemática as hormonas anabolizantes, ou seja, a hormona do crescimento, a prolactina e a testosterona, e são controladas as hormonas catabolizantes, com maior relevo para o cortisol e a hormona estimulante da tiroideia.

Tudo acontece de modo a que se cresça ou se reparem os tecidos dos diferentes órgãos enquanto se dorme, e estejam reguladas funções reprodutoras. Tudo acontece para que, de manhã ao acordar, o cortisol esteja num nível adequado, para que o dia comece bem. Se não dormirmos, as hormonas anabolizantes diminuem e as catabolizantes aumentam e os riscos para a saúde aparecem.

Por outro lado, o sono é essencial na regulação de energia e para a homeostase, pelo controlo da temperatura, que diminui quando dormimos, e pela regulação do controlo energético por via alimentar, num balanço entre o que nos tira a vontade de comer (a leptina, produzida à noite) e o que nos aumenta o apetite (a orexina, produzida de dia e a grelina, segregada ao fim do dia). Por tudo isto, o dormir pouco dá fadiga e aumenta o risco de aumentar de peso em todos os grupos etários.

Além disso, o sono tem uma relação estreita e complexa com a imunidade e o não dormir aumenta o risco de doenças infecciosas e eventualmente auto-imunes.

No sono controla-se a divisão celular e, por isso, tanto o dormir pouco como o dormir fora de horas ou de forma irregular aumentam o risco de cancro em ambos os sexos.

Não ter limites? A grande ilusão da época tecnológica.

Não dormir é verdadeiramente pôr em risco um aforismo romano: “Alma sã em corpo são”.

 

Professora Teresa Paiva

Lisboa, 7 de Junho de 2013